quarta-feira, 25 de novembro de 2015

amora demora...

Fruta chuvosa, doce, de uma acidez apaziguada.
Olho bem antes de morder.
A aparência fica tímida diante de tanto sentido.
Não tem começo, e não tem fim. O sabor está em tudo.
Anoto o gosto.
Não mexo em nada porque tudo está bom assim.

Entre os dentes seguro a fruta inteira.
Sorvo o suco contido em cada bago redondo e carnudo.
Amora é sempre plural.
E passa por cima do tempo.
Quanto mais consumimos, mais se constrói naquele pequeno instante, uma espécie de eternidade.

Guarde como um presente nosso, em seu coração,
porque carinho é coisa que demora a passar.

Solange Maia

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Monumentalidade...

Adriana é sólida, majestosa, feita de linhas retas.
Rafael sorri jocoso, imponente, altivo, sem nunca perder a doçura.
São dois.
Mas só até que toque a primeira nota e deem o primeiro passo.
Nessas horas não se sabe se dançam ou se levitam.
Se são dois, ou se são muitos.

Deslizam por terras vulcânicas feitas de fogo e vento, desafiando a vertigem, domando os músculos e o ar.
Dançam com generosidade. Emprestam vida e história a cada movimento.
São autores e intérpretes, um casal. E têm a beleza desolada de quem busca o outro só para depois poder partir.
Perdem-se só para depois poder se achar.

O espaço que existe entre eles é denso, tangível, tocável.
Forjam ouro, esculpem pedra, talham madeira, escrevem poesia.
Cometem explosões de dureza que se transformam em mãos macias, que deslizam sinuosas pelo outro, movimentos sincronizados de curvatura precisa, perfeitos.
Viram música, segredos, rasgos, sulcos.                                  
Contam histórias de desejos e preliminares úmidas.

Uma grande obra feita de pequenos movimentos. Minúsculos detalhes com a grandeza das catedrais.
São fluidos, orgânicos, imensos.

Seus corpos cheios de possibilidades desafiam o ar, mesmo sabendo que não podem fazê-lo. Fundem-se a ele, o respeitam como mestre, como amigo. Cometem a entrega. Abandonam-se.
Têm esse dom... o da monumentalidade.
Firmes sobre seus pés morrem a cada passo, mas surgem generosos no passo seguinte.
Um presente que não temos como agradecer.
Com eles aprendi que dançar é uma ressurreição.

Solange Maia

para Adriana e Rafael...

terça-feira, 15 de setembro de 2015

amar é difícil...

Amar é difícil.
Põe em cheque as nossas certezas, ensina que mesmo a razão mais sensata as vezes pede flexibilidade, estende nossa tolerância como nunca antes imaginado, nos faz ceder mesmo quando juramos que não o faríamos. Amar é concessão.

Amar é difícil.
Os lençóis aos montes na lavanderia, as roupas pelo chão, as toalhas muito molhadas, mas o cheiro do corpo do nosso amor na gente, e aquele olhar lento e demorado sobre nós compensa todo o resto.

Amar é difícil.
Dá medo. As relações andam muito descartáveis. Machuca de vez em quando, e nem todos os dias saem como o planejado... mas é o único lugar onde o coração descansa. Amar é ter o melhor amigo sempre por perto, é a certeza das nossas coragens. 

Amar pode ser difícil,
mas quero ser exceção.
E estou disposta, sempre, pois mesmo não sendo a coisa mais fácil, amar ainda é a melhor coisa do mundo.
Amar é abrigo.
É pertencer.
É paz.

Obrigada, amor. Por este ano !

Solange Maia 

terça-feira, 11 de agosto de 2015

depois que algumas histórias acabam...

Deram suas vidas e seus anos um ao outro. Viveram uma dessas relações difíceis de terminar. Por muito tempo acharam a vida feliz. Toda ela. Até que um dia aconteceu. Não foi de uma hora para a outra, nunca é, mas o fato é que aconteceu. O céu não amanheceu como o esperado, estava mais estreito, não tinha mais o mesmo anil. 
Difícil reconhecer, mas estava tudo lá, para quem quisesse ver. Tornaram-se estranha e delicadamente diferentes. Ainda assim tentaram. Mais um tanto de vezes. Mereciam. 
Mas a vida é urgente, já sabemos, e, gentilmente, um deles partiu. Partiu para guardar tudo o que havia sido tão bonito.
 
Um jeito lindo de encerrar uma história: renunciando para permitir que o próprio mundo, e o mundo do outro, voltasse a ser vasto.

Mas há que se partir de verdade, trazendo o corpo e o coração. Há que saber desgarrar, desfazer as amarras, revolver as raízes. E isso exige força. Força e coragem. 
Não basta só querer. Não fecha a conta. É preciso estar seguro, certo, para só assim poder estar pleno e esvaziado, pronto para merecer o que há por vir. 
Caso contrário o novo não vem.
Não vem.

E, quem sabe ainda, se a sorte lhe sorrir logo ali, na primeira esquina do acaso, você encontre um novo amor.
Assim, rapidamente. Quem sabe você descubra que com ele, em vez de respeitar as diferenças você possa amá-las. Você descubra que dessa vez quer ir até o extremo da entrega no amor, sem esconderijos, sem restos e sem retenções. Quem sabe você passe a querer tudo. Quem sabe descubra, finalmente, que há quem também queira.

E então você sinta uma alegria que nem sabia, e cuide, cuide porque nem consegue mais imaginar o que seria dos seus dias sem esse novo amor. 
Cuide porque não quer perder...
Afinal, você já conhece  a fragilidade natural do amor, e dessa vez quer caminhar pelo resto da vida ao lado de quem escolheu.

Solange Maia

sábado, 2 de maio de 2015

insensatez...

te amo sem letras maiúsculas no início das frases,
as vezes sem virgulas ou acentos.
te amo, sem medidas ou métricas,
assim, como quem foi pega de surpresa,
e no afã de amar sem perder nada,
simplesmente ama.
amo sem me preparar, sem ensaios ou polidez.
fluo. exalo. entrego.
tenho experimentado esse sentimento altamente contagioso, e potencialmente capaz de tantas coisas inimagináveis, que nem sei onde caberia a gramática. nem sei.
desprezo a ordem, a continência,
a coerência e a sensatez.
te amo errando a letra, perdendo a palavra, o tom, e, sobretudo, a lucidez.
te amo tantas vezes dando espaço onde não se deve, mas nunca, absolutamente nunca, te amo sem reticências...

Solange Maia

sexta-feira, 13 de março de 2015

quando tudo é quase pouco...

O tic-tac do relógio parecia acelerar o tempo ainda mais.
Ela era assim, prestava atenção em tudo, e sentia a urgência do mundo. De fato.
E, mais uma vez, aquela vontade imensa de se servir de cada prato do vasto cardápio que era a vida, inundava sua alma.
Tinha sido assim sempre, desde menina. Aliás, nem essa urgência, nem essa vontade, a deixavam descansar.
Essa ‘fome’ de vez em quando a esgotava, e ela não sabia exatamente como saciá-la.

Sabia que a ‘macro-história’ seguia, mas era sempre na ‘micro’, sempre nos pequenos detalhes, que ela sucumbia.
Conhecia as rotas de fuga desse labirinto onde desejos transformavam-se em faltas, onde amores transformavam-se em dores.
E esse não era o caminho que desejava trilhar.

Dessa vez queria conseguir. Precisava aprender a descansar no amor, a desistir do tempo, a degustar lentamente cada um dos momentos ofertados.
Mas queria levar pouca coisa.
Sem fragmentos de viagens passadas.
Bagagem leve, só mesmo a necessária.
Queria, de verdade, dias que bastassem...

Solange Maia

terça-feira, 10 de março de 2015

dormir de conchinha tem sido trabalho de equipe...

Ele diz que seu antebraço foi feito sob medida para a curva da minha cintura. Repousa ali o cansaço do dia, não sem antes escrever poemas inteiros nas minhas costas usando só a ponta dos dedos. Um pouco de amor para aliviar o cotidiano. Nem penso, vou logo enroscando minhas pernas nas dele e trato de ajeitar o cabelo para lhe poupar o rosto. Ajeito também as coisas no meu peito como alguém que limpa a casa para receber quem sempre esperou.

Dormir de conchinha tem sido trabalho de equipe. Até Deus fez sua parte, ao desenhar, com capricho, cada pedaço do nosso corpo, cada encosta íngreme, cada monte que se debruça sobre nossa pele branca e deságua sempre no mesmo mar. E cada gota úmida que se equilibra no penhasco das coxas corre para lá, e cada curva que segue rente às estradas que se apresentam para o nosso deleite, correm para lá. Tudo corre para o mesmo mar.  

Mas, na verdade, somos apenas dois corpos estreitados em um desejo sereno, acolhendo-se antes de dormir, e às vezes pode parecer pouca coisa. Mas não é. É de uma beleza sem tamanho. É tanto. É tanto.
                                                                                         
Então, quando ele diz que seu antebraço foi feito sob medida para a curva da minha cintura, é mentira. É só um jeito de simplificar tudo. Ele sabe que na verdade somos falésias, encontros milenares de terra e mar, esculpidos pela ação do tempo pelos últimos 180 milhões de anos. Somos feitos dessa água que avança sobre os continentes do corpo e cava curvas só para que no fim das tardes os amantes possam se encaixar.
Somos uma espécie de oração.

Solange Maia